quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Varandas da Eva- ensaio

O conto intitulado: “Varandas da Eva”, do escritor amazonense, Milton Hatoum, instiga a imaginação do leitor a começar exatamente pelo título, pois o mesmo nos possibilita lembrarmos a história bíblica relatada no livro de Gênesis sobre o surgimento da humanidade. Porém, essa lembrança é revivida em uma vertente mais erótica, vinculada à sensualidade de uma mulher, no caso Eva, que por meio de sua artimanha feminina, consegue convencer o seu companheiro a “pecar”. Assim, pressupõe-se que a história evidenciada no conto, será uma narrativa de erotismo, visto que ele e conseqüentemente o sexo, em tempos remotos, era visto como prática pecaminosa que não conduzia os seres humanos ao reino dos céus, denominado de paraíso pela religião cristã.

Isso significa que os pensadores cristãos encaravam o sexo como um mal necessário, lamentavelmente indispensável para a reprodução humana, mas que perturbava a verdadeira vocação de uma pessoa – busca da perfeição espiritual, que transcende a carne. É por isso que os ensinamentos cristãos exaltam o celibato e a virgindade como as mais elevadas formas de vida. O que marcou a ruptura decisiva com a antiguidade pagã. (RICHARDS, 1992, p.34).

Além de “Eva” propiciar ao leitor essa inferência de um conto baseado em questões amorosas e, sobretudo eróticas, a preposição “da”, conduz a uma reflexão complementar: não é qualquer mulher revelada na história, mas sim “a Eva”, “a varanda(s) não é de Eva”, e sim daquela mulher que provavelmente é diferente de todas as outras, ela é especial, porque possui elementos de sensualidade que não estão presentes em qualquer uma. Desse modo, a preposição “da”, faz toda a diferença para se perceber a especificidade e a unicidade de uma mulher dentre todas as outras.
Outra palavra que nos chama a atenção é “a varanda (s)” que é da Eva. O dicionário Aurélio (2001, p.901), nos dá as seguintes definições para essa palavra. “Varanda – 1. Terraço com coberta que fica na frente das casas; alpendre; 2. Gradeamento de sacadas ou de janelas abertas ao nível do pavimento; 3. Balcão, sacada.”
Certamente a definição de número um é a mais conhecida por nós. Assim, a concepção que temos de varanda, é exatamente a de um alpendre, o qual se utiliza para descansar, para reunir com os amigos em um dia ensolarado, um lugar de conforto e extremo prazer. Mas também é o lugar da casa que exala romance. Desse modo, “a varanda” tem sido palco de estórias vivenciadas por muitos amantes relatados em diversas obras literárias. Nesse mesmo sentido a pluralização da palavra Varanda(s) pode ser analisada sobre a óptica deste espaço como objeto multiplicador. O lugar é um só, mas o significado que ele tem para seus freqüentadores é único e múltiplo ao mesmo tempo, pois não há apenas um freqüentador, mas muitos. No entanto, a mulher, Eva é única. Será que ela agia assim com todos os homens? É a pergunta que o leitor se faz.
É importante considerar também o lugar onde o conto acontece: Manaus que, para o próprio autor, é uma cidade portuária que além de avivar a memória do narrador é um lugar de aventuras. Alessandro Atanes (2009) em entrevista com Hatoum fala sobre as aventuras do autor durante a infância no porto de Manaus onde o avô o levava. Lá ele via pessoas diferentes, já que Manaus era uma cidade portuária, cosmopolita e tinha um movimento intenso colorido, onde também circulavam histórias. Por isso a cidade portuária é onde ocorre a experiência da narração, lembrando que de acordo com a etimologia, narrador é aquele que conhece, isto é, é aquele que, no caso, ouve as histórias que chegam ou partem. Aqui o lugar de onde chegam e partem é o porto. Benjamim Walter (1994, p.16) analisa a relação entre o narrador e sua matéria - a vida humana – e questiona: não seria esta uma relação artesanal? “Não seria tarefa do narrador trabalhar a matéria-prima da experiência - a sua e a dos outros - transformando-a num produto sólido, útil e único?” Segundo ele, o que diferencia o texto literário de uma simples notícia é o sabor da narrativa despida das explicações da informação jornalística. A narrativa faz com que ouvinte/leitor se esqueça de si mesmo enquanto a acompanha. E acrescenta ainda dizendo que o ouvinte/leitor, sem se distanciar de seu trabalho, não abrevia ou sintetiza a obra; ele é paciente como o narrador, obedece ao fluxo do tempo com sensibilidade e disciplina.
[...] o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer a um acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida. (BENJAMIN, 1994, p. 221).

Benjamin Walter (1994) menciona que o narrador em exercício de seu trabalho exerce função semelhante ao camponês ou marinheiro. Para tanto analisa a presença do camponês sedentário e do marinheiro comerciante como arquétipos repletos de histórias contadas nos primórdios das narrativas orais, que na visão dele se constituem num processo mais amplo que apenas transmitir informações. Para ele a narração não é somente o conjunto de entonação de vozes, mas, sobretudo comporta uma riqueza de detalhes e de beleza por meio de gestos que avivam as histórias e as tornam mais interessantes conduzindo-nos a uma imaginação mais real e concreta. Além de enfatizar a importância da narrativa, Benjamin Walter faz referência também, ao surgimento do romance, enfatizando que o narrador contemporâneo se encontra mais solitário, pois escreve sozinho, e muitas vezes nessa escrita, ele se dilui, porque em algum momento o que ele escreve tem o intuito de apenas informar. De algum modo, talvez esse seja um dos maiores desafios do narrador: conseguir descrever as coisas, os sentimentos, a percepção do mundo a sua volta, de uma forma que transmita vivacidade e permita ao leitor inúmeras possibilidades de imaginar, viver e reviver emoções por meio de uma literatura que evoluiu, mas que necessita preservar também características de uma narrativa que é milenar.
O conto “Varandas da Eva” possuidor de uma narrativa envolvente conduz o leitor pela sutileza do narrador personagem a seu tempo de infância. Ele remete o leitor a uma época em que a velocidade da modernidade não podia acelerar o ritual de experiências e costumes típicos de um lugar onde as crianças poderiam brincar na rua e a camaradagem entre adolescente ainda era capaz de propiciar deliciosas traquinagens. Todavia, o mistério se instala quando é mencionada a experiência tão sonhada em conhecer a Varandas da Eva. É sabido que a adolescência é caracterizada pela falta de um lugar totalmente delimitado, pois ora se é jovem demais ora não é mais criança. Assim, vivem perdidos no tempo à espera que o passar dos anos ao lado das experiências possa delinear um horizonte e inaugurá-los na tão sonhada juventude. Percebemos essa relação na narração quando este desejo se mostra logo no início do conto:

Não era longe do porto, mas naquela época a noção de distância era outra. O tempo era mais longo, demorado, ninguém falava em desperdiçar horas ou minutos. Desprezávamos a velhice, ou a ideia de envelhecer; vivíamos perdidos no tempo, as tardes nos sufocavam, lentas: tardes paradas no mormaço. Já conhecíamos a noite: festas no Fast Clube e no antigo Barés, bailes a bordo dos navios da Booth Line, serenatas para a namorada de um inimigo e brigas na madrugada, lá na calçada do bar do Sujo, na praça da Saudade. Às vezes entrávamos pelos fundos do teatro Amazonas e espiávamos atores e cantores nos camarins, exibindo-se nervosamente diante do espelho, antes da primeira cena. Mas aquele lugar, Varandas da Eva, ainda era um mistério. (HATOUM, 2009, p.7)

O adolescente sente muito prazer em desafiar e desvendar os mistérios que os seduzem e fascinam. Os hormônios ávidos por emoção fazem com que todo esforço mental e físico se volte para transpor os limites que impelem a tão sonhada experiência amorosa. Stendhal (2007) descreve os tipos de amor e especificamente sobre o amor físico afirma que “Todo mundo conhece o amor fundado nesse gênero de prazer; por mais seco e infeliz que seja o caráter, começa-se por aí aos dezesseis anos.” (p. 11). Nesse caso podemos ainda complementar com a idéia de Schopenhauer (2004) quando este fala sobre as características dos sexos. O homem se sente fascinado pelo corpo da mulher, sua estatura e modo de andar somado aos olhares podem seduzir um homem. Os adolescentes geralmente sonham estar com mulheres “feitas” porque eles desejam ver e tocar corpos cheios e bem formados. E é com características semelhantes que o narrador descreve a sua experiência no conto Varandas da Eva. Instigados pelos relatos de outros que se gabam de suas noitadas de sexo, os pentelhos se roem de inveja e ansiedade. Assim é que o narrador personagem via o tio Ran. Homem feito que contava aos mais jovens as proezas de freqüentar as noitadas na companhia de mulheres.
Mas vocês precisam crescer um pouquinho, as mulheres não gostam de fedelhos. Invejávamos tio Ran, que até se enjoara de tantas noites dormidas nas Varandas. A vida, para ele, dava outros sinais, descaía para outros caminhos. Enfastiado, sem graça, o queixo erguido, ele mal sorria, e lá do alto nos olhava, repetindo: Cresçam mais um pouco, cambada de fedelhos. Aí levo todos vocês ao balneário. (HATOUM,2009,p.8)

A não preferência das mulheres por “fedelhos”, incita-nos a recorrermos as ideias de Schopenhauer (2004) que nos revela que as mulheres gostam de homens por volta de 30 a 35 anos, pois nessa faixa etária se encontram no apogeu da procriação, que tenham força e coragem e apresentam características de masculinidade. Mas essa busca por prazer experimentada pelo tio Ran não tornava sua vida mais alegre. As noitadas traziam-lhe enjôo e o fato de parecerem sem graça nos remete a alguma desilusão amorosa.. [...] “a definição romântica do amor como “até que a morte nos separe” está decididamente fora de moda,...” [...] “Noites avulsas de sexo são referidas pelo codinome de “fazer amor”“. (BAUMAN, 2004, p.19)
A fragilidade das relações e a velocidade dos acontecimentos na vida do homem contemporâneo que anseia por manter laços afetivos, mas quer que estes sejam frouxos é questionada por Bauman em seu livro Amor Líquido (2004). O tio Ran personagem do conto é homem adulto e pela descrição apresentada no conto está cansado de amores esporádicos, pois como afirma Bauman estas paixões são frustrantes. Segundo este mesmo autor, manter os relacionamentos de bolso, fáceis e passageiros, pode até dar algum prazer, mas não trazem a plenitude que só o amor construído e cultivado pode proporcionar. O que se podia ter nas Varandas da Eva? Comprava-se prazer. Bauman compara esse tipo de relacionamento ao ato de consumo. Semelhante fato ocorre nos shoppings centers, as pessoas se olham, sentem desejo e buscam a satisfação imediata como se pudesse consumir o outro. Observamos nos dias atuais a sede por sexo sem compromisso. A concepção masculina muitas vezes compreende o ato sexual como uma prática de esporte. O iniciado precisa desenvolver as habilidades sexuais urgentemente, caso contrário, corre sério risco de ter seu membro atrofiado. Bauman critica esta postura quando afirma que esse tipo de experiência nada acrescenta ao bom e maduro relacionamento amoroso.
Pode-se até acreditar (e frequentemente se acredita) que as habilidades do fazer amor tendem a crescer com o acúmulo de experiências; que o próximo amor será uma experiência ainda mais estimulante do que a que estamos vivendo atualmente, embora não tão emocionante ou excitante quanto a que virá depois. [...] outra ilusão... ( BAUMAN, 2004, p.19).

Se de um lado Bauman critica o exagero e velocidade de ter e se desfazer uma relação amorosa, Arthur Schopenhauer (2004) afirma que todo enamorar-se se enraíza unicamente no impulso sexual que absorve a metade das forças e pensamentos da parte mais jovem da humanidade. A escolha do (a) parceiro (a) segundo este, é fruto do instinto bem determinado, nítido, complicado, uma escolha tão sutil, séria e obstinado para a satisfação sexual. Para o outro a escolha do parceiro certo depende de tempo e maturidade no relacionamento. Enquanto para um o momento da sedução é como vinho suave que docemente nos envolve e estonteia para outro o momento é pouco o que deve perpetuar é a valorização do outro e reconhecimento de suas identidades, sendo portanto amor construído e compartilhado. No conto o narrador faz uma revelação da magia do encontro, os olhares e gestos daquela desconhecida era um convite para o enlace do desejo sexual segundo Schopenhauer.
Na luz vermelha, quase noite, Minotauro me cutucou: uma mulher sorria para mim. Não vi mais o Minotauro, nem quis saber do Gerinélson. Só olhava para ela, que me atraía com sorrisos; depois ela me chamou com um aceno, girando o indicador, me convidando para dançar. Não era alta, mas tinha um corpo cheio e recortado, e um rostinho dos mais belos, com olhos acesos, cor de fogo, de gata maracajá. Dançamos três músicas, e dançamos mais outras, parados, apertadinhos, de corpo molhado. (HATOUM, 2009, p.10).

Em Stendhal (2007) podemos analisar o trecho acima onde percebemos que a necessidade de descrever os traços femininos revela como talvez os homens, que não sejam suscetíveis de experimentar o amor-paixão, sentem mais vivamente os efeitos da beleza; ao mesmo tempo a beleza física é a impressão mais forte que podem receber das mulheres. Quando não se conhece o outro, encontramos nele qualidades que nos faltam. No momento em que o narrador faz referência ao “corpo cheio e recortado” da mulher que estava dançando, evidenciam-se as idéias de Schopenhauer com relação à preferência dos homens por mulheres possuidoras de um esqueleto com proporções corpóreas com abundância de carne que conduzem a um bom desenvolvimento do feto, enfocando assim, a possibilidade da procriação que segundo ele é a finalidade do amor-procriar. A inexplicável química e a vontade irracional que atrai os sexos, masculino e feminino, também são evidenciadas pelo referido autor na frase: “só olhava para ela, que me atraía com sorrisos” (p.10). Além disso, é notória a presença do prazer e erotismo, abordados na obra de Octavio Paz (1994), A dupla chama: amor e erotismo, no momento em que o jovem relata: “Dançamos três músicas, e dançamos mais outras, parados, apertadinhos, de corpo molhado” (p.10). O desejo e o prazer carnal do rapaz se encontram explícitos na frase, demonstrando o surgimento de uma reação prazerosa que domina por completo o seu corpo e toma conta do seu ser. E ainda de acordo Stendhal (2007, p. 12):

O certo é que, em qualquer gênero do amor a que devamos os prazeres, desde que haja exaltação da alma, eles são fortes, e sua lembrança impulsiona; e nessa paixão, ao contrário da maioria das demais, a lembrança do que perdemos parece sempre superior ao que podemos esperar do futuro.


Dessa forma, podemos sintetizar essas questões na obra de Paz, quando é mencionado que: “a sexualidade é animal; o erotismo é humano”. (Paz, 1994, p.100-101). O narrador classifica o momento vivenciado com a mulher como inesquecível, no entanto, dela ele só sabia coisas do sexo. Não podia ter acesso ao nome, pois assim, sem referência, jamais poderia encontrá-la caso desejasse. O nome é uma referência forte e muitas mulheres do sexo usam pseudônimos. Nesse caso ela permitiu apenas as lembranças do momento sem passado nem futuro. Assim como Bauman (2004) faz referência ao amor como momento único sem história passada e sem previsões futuras para o narrador aquele momento se eternizou.

Ela me ensinou a fazer tudo, todos os carinhos, sem pressa, com o saber de mulher que já amou e foi amada. Passamos a noite nessa festa, sem cochilo, e muitos risos, de só prazer. Fez coisas que davam ciúme, carícias que não se esquecem. Perguntei como ela se chamava. Ela disfarçou, e disse, rindo: Meu nome? Tu não vais saber, é proibido, pecado. Meu nome é só meu. Prometo. (HATOUM,2009,p.11 )

A descrição do jeito de olhar revela coisas que só o coração pode sentir. “Tia Mira dizia que eu estava babado de amor. Estás tonto por uma mulher, ela ria, observando meu devaneio triste, meu olhar ao léu” (Hatoum, 2009, p.11-12 ). As lembranças de momentos e pessoas duram de acordo a importância que se dá a eles. Muitos dizem que o primeiro amor nunca se esquece e de fato grande parte das pessoas se lembra do primeiro beijo e quase nenhuma delas esquece a primeira transa. Esses momentos de intimidade partilhada mesmo não sendo boas tendem a serem lembradas. O narrador guardou essa lembrança com vestígios de uma paixão incontida. E ele próprio questiona o seu desejo de saber o nome dela e conclui que basta o momento e sua magia. “A voz e a risada bastavam, minha curiosidade diminuía. Nome e sobrenome não são aparências?” (Hatoum, 2009, p. 11). Semelhante reflexão acerca do nome, que nada mais é que as aparências que coíbem os amantes, também são mostradas no romance de Shakespeare - Romeo e Julieta.

JULIETA - Romeu, Romeu! Ah! Por que és tu Romeu? Renega o pai, despoja-te do nome; ou então, se não quiseres, jura ao menos que amor me tens, porque uma Capuleto deixarei de ser logo.
[...]
JULIETA - Meu inimigo é apenas o teu nome. Continuarias sendo o que és, se acaso Montecchio tu não fosses. Que é Montecchio? Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto, nem parte alguma que pertença ao corpo. Sê outro nome. Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume. Assim Romeu, se não tivesse o nome de Romeu, conservara a tão preciosa perfeição que dele é sem esse título. Romeu risca teu nome, e, em troca dele, que não é parte alguma de ti mesmo, fica comigo inteira. (SHAKESPEARE, Cena II, 2000)

Desse modo, fica evidente a paixão súbita que envolve os personagens apaixonados. O sentimento ultrapassa os limites do nome, pois o amor não obedece aos preconceitos. A sociedade hipócrita traça o destino das pessoas em patamares diferentes daqueles traçado pelo coração: classe social. Muitos casais se formam por medo da solidão, por interesses e a infelicidade conjugal maltrata os corações. Em Hatoum, o narrador - personagem apesar de aparentemente não saber nada de sua amada, se deixou levar pelo “fogo” desse sentimento que invadiu a sua alma e o corpo, fazendo-o esquecer de tudo e de todos, pois naquele instante só existiam “eles dois” e ela era a “única”, era a mulher que ele desejava. E em Shakespeare mesmo sabendo das limitações que envolvem suas famílias os apaixonados desejam ardentemente renegar seus nomes em prol de viver este amor. Vale lembrar que a literatura retrata também costume e valores de um povo em um dado momento histórico. O nome da família na sociedade inglesa era algo muito importante que jamais deveria ser contestado. No entanto, Shakespeare vem questionar os valores de seu tempo. O que é mesmo importante, o sentimento que une as pessoas ou as aparências? O amor se mostra forte e rouba a cena, desfaz o ódio e planta a esperança de união. Segundo Paz (1994, p.34):
(...) esta é uma linha que marca a fronteira entre o amor e o erotismo. O amor é atração por uma única pessoa: por um corpo e uma alma. O amor é escolha; o erotismo, aceitação. Sem erotismo – sem forma visível que entra pelos sentidos – não há amor, mas este atravessa o corpo desejado e procura a alma no corpo e, na alma, o corpo. A pessoa inteira.

Assim, a partir do trecho anterior, quando a tia do personagem menciona que ele ama aquela mulher e por meio da vasta literatura que se tem sobre esse sentimento percebe-se que “o amor” existe em todas as épocas em todas as classes. Mas de acordo com Paz (1994) “é preciso distinguir entre o sentimento amoroso e a idéia do amor adotada por uma sociedade e uma época”. Pois ainda hoje, na sociedade contemporânea, a concepção, a idéia que se tem do amor, é que ele não pode ser vivenciado com uma prostituta, pois a ela está reservada somente a possibilidade de “oferecer sexo e prazer” e não amor. No entanto, no olhar do referido autor: “o sexo é a raiz, o erotismo é o talo, e o amor, a flor” (p. 37). Esses sentimentos se completam sem um deles nunca se atingirá a tão sonhada cumplicidade e realização amorosa.
É interessante notar a concepção de tempo vivenciado pelo narrador. O tempo passa, os amigos tomam seus destinos, a vida fica diferente.
E já não era jovem. A gente sente isso quando as complicações se somam, as respostas se esquivam das perguntas. Coisas ruins insinuavam-se, escondidas atrás da porta. As gandaias, os gozos de não ter fim, aquele arrojo dissipador, tudo vai se esvaindo. E a aspereza de cada ato da vida surge como um cacto, ou planta sem perfume. Alguém que olha para trás e toma um susto: a juventude passou. (HATOUM, 2009, p. 13).

Mas em outro momento ele contradiz a essa relação com o tempo quando a sua memória resgata a lembrança da mulher que aos seus olhos permanece a mesma de outrora. A juventude ainda presente naquele rosto nos faz crer que para as recordações o tempo permanece estagnado e resiste a toda e qualquer modificação. O coração em sintonia com a memória revive as emoções mais íntimas e fortes como se o ontem fosse agora. Isso ocorre porque “(...) pelo amor roubamos ao tempo que nos mata umas quantas horas que transformamos, às vezes, em paraíso e outras em inferno”. (Paz, 1994, p. 117).

À porta apareceu uma mulher para apanhar o cesto. Reapareceu em seguida e acenou para Tarso. Num relance, ela ergueu a cabeça e me encontrou. Estremeci. Eu ia virar o rosto, mas não pude deixar de encará-la. Ela me atraía, e a lembrança surgiu agitada, confusa. A voz dela chamou: Meu filho! A mesma voz, meiga e firme, da moça, da mulher da casinha vermelha, no balneário Varandas da Eva. Era a mãe do meu amigo? Isso durou uns segundos. Por assombro, ou magia, o rosto dela era o mesmo, não envelhecera. Mal tive tempo de ver os braços e as pernas, a memória foi abrindo brechas, compondo o corpo inteiro daquela noite. (HATOUM, 2009, p. 14).

É notório que o narrador ao perceber que ele não era mais jovem, misteriosamente vê a mulher a quem tanto procurara, ali, diante dos seus olhos, com a mesma beleza juvenil de outrora. Ou talvez a “juventude” que o mesmo estava vendo nela, era simplesmente a magia do seu olhar apaixonado, do seu intenso desejo que ficara preso no passado, mas que se tornava presente naquele instante.
O amor é intensidade, não nos presenteia com a eternidade, mas sim com a vivacidade, esse minuto no qual se entreabrem as portas do tempo e do espaço - aqui é mais além e agora é sempre. No amor tudo é dois e tudo tende a ser um. (Paz, 1994, p. 118)

É por esse motivo que o narrador ficou em êxtase quando reencontrou a mulher que lhe deu prazer, numa relação repleta de erotismo e porque não dizer também de amor? Talvez esse “amor”, nunca tenha sido correspondido, mas é exatamente nesse aspecto que esse sentimento considerado universal se difere da amizade, pois numa relação entre amigos, é preciso haver a recíproca, enquanto podemos amar e desejar alguém sem que o outro sequer saiba que existimos. Mas instantaneamente vem a descoberta, o susto, a surpresa, a decepção.
Nessa perspectiva, “o amor é trágico” (PAZ, 1994, p.105), pois mesmo não querendo, inúmeras vezes sofremos por amor, desejamos ardentemente alguém com todas as nossas forças, de corpo e alma. E de repente, perdemos essa pessoa, pelos mais distintos motivos, sejam eles pela dor da separação diante da morte de um dos amantes, pelo medo de amar, pelo tempo, pela distância geográfica e muitas outras, logo todos esses aspectos fazem parte do “separar-se”.
O desfecho surpreendente da trama vem dessa descoberta, o porquê da separação, pois a história relata o momento fervoroso de prazer, paixão, desejo e erotismo vivenciados naquele ambiente iluminado por velas vermelhas e não revela o motivo o qual instigou a mulher a desaparecer sem deixar pistas, deixando o homem que conhecera “o fogo de amar sem ser amado” desolado. A partir de tal desaparecimento, o conto nos instiga a imaginar várias possibilidades, várias razões que suscitaram a mulher não querer mais ver “aquele amante”, companheiro de instantes tórridos. E esse motivo só nos é mencionado quando lemos extasiados a frase proferida por ela: “Meu filho!” Conclui-se que a mulher com quem esteve o narrador era a mãe de seu amigo Tarso. A quem chamou de desmancha prazer por não querer entrar na casa de luzes vermelhas naquela noite maravilhosa.
A surpresa e recordações revividas se misturaram e ali se finda uma história de uma aventura ou desventura de um menino-homem percorrendo os caminhos do amor e sexo. Ambos se diferem e se completam. Erotismo, paixão e amor três emoções desejadas pela humanidade. Sentimentos que provocam prazer, felicidade, incertezas e muitas vezes dor. Sentimos dor por não ser correspondido, por perder o outro a quem amamos ou dor em não poder dominar nossas emoções e amar a quem nos ama ou mesmo quem mereça nosso carinho e atenção. Mas o amor é um sentimento livre de nossa manipulação e estamos sempre a mercê das loucuras do coração divagando entre momentos inesquecíveis e trágicos na esperança de um dia poder experimentar o eclipse do amor-paixão.












REFERÊNCIAS:
ATANES, Alessandro. Entrevista com Milton Hatoum- Porto Literário, em 06 de setembro de 2009 às 12:22 h.<>
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004
BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
DURIGAN, Jesus Antônio. Erotismo e Literatura. São Paulo: Ática, 1985.
MURARO, Rose Marie. A Mulher do Terceiro Milênio: Uma História Através dos Tempos e suas Perspectivas para o Futuro.Rio de Janeiro, 2°Ed: Rosa dos Tempos, 1992.
PAZ, Octavio. A dupla chama: Amor e Erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994.
PRAZ, Mário. A Carne, A Morte e o Diabo na Literatura Romântica.Tradução: Philadelpho Menezes.Campinas, SP: Editora UNICAMP, 1996.
______________. Um Mais Além Erótico: Sade. Tradução: Wladir Dupont. São Paulo: Paulo: Mandarim, 1999.
RICHARDS, Jeffrey. Sexo Desvio e Danação: As Minorias da Idade Média. Tradução: Antônio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Amor. Metafísica da Morte. São Paulo: Martins Fontes, 2004
STENDHAL. Do Amor. Porto Alegre: L&PM, 2007.
VICENTE, Josélia Aparecida Pires. O erotismo em sua evolução histórico-cultural: a saga da temática mais repelida e cobiçada da Literatura. Disponível em: < http://www.alb.com.br/anais15/alfabetica/VicenteJoseliaAparecidaPires.htm > Acessado em 16 de outubro de 2009.
SHAKESPEARE, William. Romeo e Julieta. Disponível em: <file:///C/site/LivrosGrátis/romeuejulieta1.htm (19 of 61) [02/04/2001 16:46:40> Atualizado em Julho de 2000. Acesso em 27de outubro de 2009.